Faz sentido produzir mísseis e não canhões?
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17 de junho de 2024Recentemente a imprensa noticiou o sexto teste de protótipos do míssil antinavio MANSUP, da Marinha do Brasil, enquanto o Exércio concluiu a avaliação técnica e iniciou a operacional do MSS 1.2AC ([1] e [2]). Por outro lado, a Aeronáutica, que foi pioneira entre as três Forças Armadas no desenvolvimento de mísseis e chegou a ter três projetos em execução simultânea (MAA-1B, MAR e A-Darter), interrompeu todos há mais de 6 anos [3]. Como estão estes projetos?
O pioneiro: míssil MAA-1 “Piranha”
Há cerca de 20 anos, o Brasil produziu um lote de mísseis MAA-1 “Piranha” para a Força Aérea Brasileira (FAB). O MAA-1 é um míssil ar-ar com sensor infravermelho, de terceira geração, e significou um importante avanço da Base Industrial de Defesa, já que foi o primeiro armamento guiado desenvolvido e produzido no país. Esse programa foi iniciado em 1976 pelo Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE). Posteriormente, empresas parceiras como a DF Vasconcellos, IMBEL e Embraer contribuíram com recursos para o desenvolvimento de partes desse programa, que foi interrompido com a crise econômica da década de 1980. Em 1993, ele foi retomado pela empresa Mectron, a partir de um contrato que envolveu o montante de US$ 8 milhões e, porteriormente, foi acompanhado de um outro contrato de US$ 20 milhões, cobrindo a produção inicial de 100 mísseis [3]. Esse projeto foi tão promissor que, em 2004, as três Forças Armadas estudaram uma versão lançada do solo, semelhante ao “Chaparral” americano, mas que jamais foi concretizada.
O sucessor: míssil MAA-1B
O sucessor desse projeto seria o MAA-1B, um míssil ar-ar de quarta geração, com dois sensores em cores (frequências) diferentes, capaz de distinguir alvos de flares. O míssil também possuía dois estágios de propulsão que aumentavam seu alcance em relação à sua versão anterior [3]. O projeto também ficou a cargo da Mectron, que encomendou 15 unidades dos sensores à empresa Opto, em 2008. O contrato envolvia US$ 50 milhões, no entanto, foi interrompido com o encerramento das atividades da Mectron em 2016, encerrando também o projeto “Piranha” [4].
Cooperação com a África do Sul: míssil A-Darter
Encerrando a saga dos programas de mísseis ar-ar, há o projeto de desenvolvimento do A-Darter em cooperação com a África do Sul. Trata-se de um míssil de quinta geração, portanto, com imagiador infravermelho, capaz de identificar o alvo de qualquer ângulo (all-aspect) e com dois estágios de propulsão para auferir maior alcance [3]. O projeto visava principalmente à transferência de tecnologia, já que a Denel, empresa sulafricana envolvida no projeto, já demonstrara avanços significativos nos mísseis de quinta geração, o que permitiria ao Brasil dar um salto em tecnologia. O projeto teve início em 2006, a um custo estimado de US$ 52 milhões [3], e foi concluído em 2019. Entretanto, nenhum míssil foi adquirido [5] e, em 2021, a FAB decidiu adotar o míssil IRIS-T nos seus caças Gripen [6].
O mais ambicioso: míssil MAR-1
Em 1998, a FAB iniciou um programa de desenvolvimento do MAR-1. Este consiste de um míssil ar-solo, antirradiação, de médio alcance, que foi concebido a partir da base técnica e industrial adquirida com o MAA-1 [3]. Este sistema visa a neutralizar radares inimigos, eliminando as defesas antiaéreas, um tipo de armamento que não está disponível para aquisição no mercado internacional, portanto, é o projeto de mísseis mais ambicioso já conduzido no país. Os desafios tecnológicos iam desde a construção de um seeker com receptor de rádio-frequências de banda larga, entre 0,5 e 18 GHz, até o desenvolvimento do primeiro motor-foguete nacional de sustentação de queima lenta e axial (tipo cigarro), com duração de cerca de 2 minutos. Este motor se diferenciava de todos os demais já produzidos no país, que eram de queima radial, com duração de alguns segundos. As tubeiras de exaustão, portanto, deveriam suportar o calor e a erosão gerada pelos gases por longo período.
Em 2010, a FAB estabeleceu um contrato com a Mectron, no valor total de R$ 190 milhões, para atualização do projeto [3]. O programa foi tão promissor que despertou interesse de outros países, e a empresa fechou contrato de 85 milhões de euros, para fornecer 100 mísseis e integrar nos caças JF-17, Mirage III e Mirage V ROSE do Paquistão [7]. Entretanto, o projeto foi interrompido e o contrato com o Paquistão rescindido, em 2016, com o encerramento das atividades da Mectron [4].
Análise
De tudo exposto, é evidente que os programas de mísseis do país sofrem interrupções decorrentes, principalmente, de incertezas orçamentárias, além da falta de planejamento conjunto, haja vista a profusão de projetos que dividem esforços e concorrem por recursos normalmente escassos.
Por exemplo, muitas das tecnologias desenvovidas podem ser aplicadas a mais de um projeto, como é o caso dos sensores infravermelho dos mísseis ar-ar, que poderiam ser empregados em sistemas de defesa antiaérea de curto alcance e antitanque, e da tecnologia de motores-foguete de queima lenta aplicada tanto ao MAR-1, projeto da FAB, quanto ao MANSUP, projeto da Marinha. Para um exemplo mais emblemático, veja-se que a Avibras desenvolveu microturbinas para o míssil MTC-300, projeto do Exército [8], ao passo que a SIATT/EDGE anunciou, recentemente, a intenção de desenvolver o MANSUP-ER (alcance estendido), movido a microturbina [9].
Diferentemente de outros mercados, a industria de defesa configura-se como um monopólio ou oligopólio, ao mesmo tempo que tem um único cliente, o governo. Essa configuração gera barreira de entrada de novos players que dificulta a competitividade e profusão do mercado. Portanto, essa relação de poder entre mercado produtor e consumidor não pode prescindir de uma legislação específica, que flexibilize as contratações de desenvolvimentos tecnológicos, caracterizados por riscos e incertezas, forneça garantias de continuidade das compras governamentais que incentive os investimentos privados, ao mesmo tempo que adote um sistema de governança e transparência, formando um ambiente que promova a cooperação entre as partes interessadas.
Cabe estudar o modelo promissor que vem sendo adotado na Turquia. Em 10 anos, o setor da indústria de defesa daquele país deu um salto considerável, subindo de uma para sete empresas figurando entre as 100 maiores empresas de armamento do mundo [10].
Referências:
[1] Coelho, Fernando. Míssil Nacional MANSUP acerta o alvo durante lançamento de teste. Portal TechDefesa. 4 mar 2024. Disponível em: https://portal.techdefesa.com/2024/03/04/missil-nacional-mansup-acerta-o-alvo-durante-lancamento-de-teste/. Acesso em: 12 jun 2024.
[2] Exército Brasileiro. Exército avança em nova fase de testes de Míssil Anticarro. 7 jun 2024. Disponível em: https://www.eb.mil.br/web/noticias/w/exercito-avanca-em-nova-fase-de-testes-de-missil-anticarro. Acesso em: 12 jun 2024.
[3] Silveira, Esther Krüger. Os Mísseis na Força Aérea Brasileira: Um Estudo Sobre os Programas de Desenvolvimento e Seus Desafios. Trabalho de conclusão de curso (Graduação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Bacharelado em Ciências Sociais, Porto Alegre, 2023. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/258993. Acesso em: 12 jun 2024.
[4] Opto. MAA: Espoleta ativa para os Mísseis Piranha MAA-1A e MAA-1B. Disponivel em: https://opto.com.br/espaco-e-defesa/maa/. Acesso em: 12 jun 2024.
[5] Agência Força Aérea. Evento marca encerramento do ciclo de desenvolvimento do projeto A-Darter: Sistema atende aos requisitos técnicos, operacionais, logísticos, industriais e de segurança. Disponível em: https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/34702/. Acesso em 13 jun 2024.
[6] Agência Força Aérea. FAB assina contrato para aquisição dos modernos mísseis IRIS-T: Míssil inteligente, com alta capacidade de manobra e imune a contramedidas eletrônicas. Disponível em: https://www.fab.mil.br/noticias/mostra/38396/. Acesso em: 13 jun 2024.
[7] Valduga, Fernando. Míssil brasileiro MAR-1 é integrado em caças do Paquistão. Cavok. 17 maio 2011. Disponível em: https://www.cavok.com.br/missil-brasileiro-mar-1-e-integrado-em-cacas-do-paquistao. Acesso em: 13 jun 2024.
[8] Galante, Alexandre. Míssil MTC-300 entra em fase final de desenvolvimento. Forças Terrestres. 26 mar 2018. Disponível em: https://www.forte.jor.br/2018/03/26/missil-mtc-300-entra-em-fase-final-de-desenvolvimento/. Acesso em: 13 jun 2024.
[9] DefesaNet. SIATT e GRUPO EDGE anunciam parceria estratégica para desenvolvimento do MANSUP-ER. 14 nov 2023. Disponível em: https://www.defesanet.com.br/edge-group/siatt-e-grupo-edge-anunciam-parceria-estrategica-para-desenvolvimento-do-mansup-er/. Acesso em: 13 jun 2024.
[10] Forças de Defesa. Análise da Base Industrial de Defesa da Turquia e da Coreia do Sul. 20 jun 2023. Disponível em: https://www.forte.jor.br/2023/06/20/analise-da-base-industrial-de-defesa-da-turquia-e-da-coreia-do-sul/. Acesso em: 13 jun 2024.